sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Vila-Pouca de Aguiar, 26 de agosto de 1975.



Escrevem à máquina em face deste campo; milhões de folhas de papel para trilhões de folhas de árvore; mulheres sentadas oito horas por dia a escrever cartas e a dar forma lapidar à evidência. Senhor doutor, senhor ovo de sabedoria, senhor de gema perdida; é o meio-dia das duas horas livres para continuar à tarde; com este horário de contenção biológica, com esta incubadora de leis, política vai gerando político, eternamente. Acumulam-se informações, mas o Estado, composto por estes milhões de homens machos que vomitam frases e testículos e lugares comuns de há séculos, não vota a lei do seu desaparecimento.

Populações,
melhor,
gentes,
eu, o Estado,
eu, o governo,
eu, a assembleia,
eu, os partidos,
eu, os jornais,
eu, os escritórios - os cafés -
as dobragens
das repartições públicas,
eu, as receitas coletivas do Estado,
eu, os homens,
que denegamos o cotidiano,
e fodemos sistematicamente
a imaginação,
a palavra balbuciada,
e as torrentes de palavras
virgens
que dormem nas nascentes


votamos o nosso próprio desaparecimento.
Fomos às universidades, mas
prometemos ficar calados,
só a abater árvores,
a enfrentar animais
e a dar possibilidade
de existência às florestas.


Maria Gabriela Llansol em Uma data em cada mão - Livro de Horas I. Assírio e Alvim, 2009.
 

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